esboço em prosa
Vivemos todos os clichés do amor romântico. Enchemos páginas
com desventuras e choros velados. Cavaleiros, demandas, noites sem tecto. Lugares
que foram tempo. Tempo que foi mar. Pedras que foram sangue. Mapas que foram
corpo. Corpo que foi alma. E hoje, ao olhar para ti, tentei descobrir-te no
passar dos anos. Brincavas com a barba, no canto na boca, com a língua, quando
estavas demasiado preguiçoso para a cortar. Roías as unhas. Rearranjavas o
sentido das palavras para dizer, à frente dos outros, que me amavas.
Reinventavas as palavras. Não por vergonha. Mas por ser proibido. Por ser um
momento só nosso. Um código secreto onde podíamos explorar-nos num trapézio de
desejos. O passar dos anos perdeu-te. Ou perdeu a minha capacidade de ver nos
teus olhos – verdes, azuis, onde era sempre dia – todos os dias que foram
noite, e noites que foram anos. Se calhar devia só ter-te tocado na mão. E
deixar a minha mão ficar assim, sobre a tua. Nunca te perguntas como as coisas
teriam sido se tivéssemos escolhido diferente? Se me tivesses deixado escolher?
Não sei quando pararei de te procurar nas pessoas que se cruzam comigo, para
montar o puzzle deste teu espaço por preencher. Olhei para trás três vezes
desde que me levantei da mesa. E ao ver-te, sentado nesse calma misteriosa que
sempre vestiste, imaginei três vidas que podíamos ter tido. Três vidas tão
diferentes daquela que a vida nos deu.
num canto de café, em
frente a um espelho
O derradeiro cliché dos nossos encontros é que não
acontecem. São uma sucessão dos nossos desejos que se manifestam no universo
paralelo onde já vivemos. Num mundo eu era loira. Noutro, ruiva. E nunca tua. O
coração que me deste deixou-me o peito em ferida. Queria poder ter ficado a conversar
contigo toda a tarde. Há coisas sobre as quais não converso com mais ninguém.
Uma vez disseste-me que eu ia envelhecer bem. Foi num centro comercial e era
Natal. E eu falei-te sobre os homens da minha vida. Não sei se ainda te conheço. Ou se ainda conheço a miúda que
te conhecia. Não sei se envelheci bem. Olhei para trás mais uma vez. Já não te
consegui ver. E tu sentado na mesma cadeira, a olhar para o telemóvel, como
quem olha para as mãos à procura de serventia para moldar a alma. Lembrei-me de
uma viagem de carro que fizemos. Ninguém na estrada. Nina Simone no rádio. Se
pudesse voltar a um momento que (se calhar) não aconteceu, voltaria a esse. Tanto
mar à nossa frente. E só uma gotinha de futuro para limpar os olhos.
Não vou olhar para trás outra vez. Já não sei que cores eram
as nossas. Tu também não. E eu não encontro a luz perfeita para esta
fotografia.
Adeus.
Adeus.
Adeus.
Adeus.
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