Tragédia de Amor em Três Pedacinhos de Acto (I)

Pedacinho de Acto I - Histórias

A luz apagou-se. Não sabemos mais onde podemos pisar sem rebentar uma mina anti-pessoal. O pano caiu para que a vida se desenrole na penumbra do palco onde os viandantes se multiplicam na vagabundagem de quem frustradamente procura um destino. Não sei se a rua está mesmo deserta, ou se já somos capazes de passar pelos outros sem os vermos. Vivemos sós na multidão que dá pão à solidão. Quando ando na rua e o meu ombro toca no ombro de quem passa ao meu lado, sinto o frio do granito que se alastrou do coração. O planeta aquece, as almas arrefecem. As duas pedras tocam-se e o fogo que nasce é fátuo... Não há luz na cidade. Os olhos habituaram-se à cegueira nocturna e, morcegos, passamos e andamos sem saber quem passou a andar por nós e nos tocou no ombro frio do granito. Gárgulas sem vida com hora definida. Porque se gárgulas clássicas, seríamos capazes de cortar o céu e de pedir à Lua que voltasse a iluminar e nos deixasse de mostrar essa face que, durante vidas, foi oculta. Tanta vontade de conhecer esse ilustre desconhecido, trouxe uma treva maior. Por vezes, a sabedoria está na atitude de quem sabe ser feliz na ignorância. E os ignorantes que apagaram a luz da cidade, onde pertence esta rua, onde pertence este jardim, onde pertence este banco, julgam-se muito sábios neste progresso demolidor, de onde só nos podemos salvar em redomas de alma e de luzes pequeninas que temos que manter guardadas do vento e da chuva. 
A luz apagou-se em toda a cidade que, deserta, assombra a alma dos que não conseguem ver que há mais pessoas nas quais chocam, mesmo que esse choque lhes dê somente a impressão do vento que empurra o corpo para o passo atrás. As pessoas recuam, então, sem notar que o fazem. A cegueira e a força do vento fazem com que pensem que é para a frente que caminham. Mas não. Será que ninguém se apercebe que apagaram a luz na cidade? Será que não percebem que o vento os faz recuar? Será que não notam que chocam em ombros que também recuam sem saber que o fazem? Ninguém caminha para a frente, nesta cidade. A luz apagou-se. Não se sabe quando amanhecerá.


(in Sentidos
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