Ficaram os dedos (I)
Foram-se os anéis. E tudo o resto.
Um olhar demasiado vazio para uma
janela tão grande. E todo os dias uma enorme maratona na mesma mesa e na mesma
cadeira. O mesmo vazio no olhar vazio. Todos os dias e tudo o resto. O tempo
parecia tê-la colocado numa redoma de natal
Nunca gostei do Natal
Em tempos, tinha gostado. Mas as
peças do puzzle tinham fugido, assim como a cor dos seus cabelos e da sua pele.
E ela numa redoma de natal, com a neve parada aos seus pés, sem ninguém que a
agitasse para fazer com que os flocos voassem e, um a um, voltassem aos seus
pés, atapetando um círculo de vidas passadas, no qual tinha medo de calcar as
oportunidades que a corrente já enterrara. O medo de estragar o que já
perdemos. Crónico e agarrado a todos os pedacinhos de pele, vincado. O medo de
estragar as lamparinas de esperança que a alma vai acendendo nos intervalos
que a dor dá. Para nada. Esperança de nada. Viver agarrada à esperança no nada.
Num tapete de flocos de neve a fingir.
E à sua frente, sempre na mesma
posição, debaixo das suas mãos, uma sobre a outra, curvadas pelas horas da
espera, uma caixa azul. Pequenina.
Ficaram os dedos. Só ficaram os meus dedos.
Um dia, apercebi-me de que
falava. Como se alguém estivesse sentado de frente, ou se alguém estivesse
atrasado para um encontro que esqueceram de marcar com ela. Ou, então, como se
velhice ocupasse a cadeira e a caixa. Uma companhia invisível, essa senhora
velhice. Falava sozinha. Ela e uma caixa. Vazia? Azul, pequenina. E as suas
mãos solitárias postas uma sobra a outra. E sobre a caixa. Um tesouro, seguro
na solidão da redoma.
Só os meus dedos.
Um dia, vou perguntar-lhe a sua
história para perceber os trajetos interrompidos no discurso insano que debita.
Um dia, pergunto-lhe o que tem na caixa e porque se senta sempre naquela mesa e
naquela cadeira. Há qualquer coisa de desperdício naquele olhar. O cabelo
prateado e uma caixa azul. Que pandora acarinhará?
Ficaram os dedos.
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