Um dia vou começar a escrever crónicas estranhas sobre o que
passa por mim, com o passar dos dias. Ainda que se possa assemelhar a um
voyeurismo doentio, há qualquer coisa de cativante no intrometer o nosso ouvido
nas esferas privadas dos outros. Como se, ao ver a diferença que nos separa dos
outros, legitimássemos as mais obscuras características da nossa pele. Passar
na rua e apanhar uma frase ao acaso da vida dos outros e ficar a remoê-la no
almofariz do pensamento, imaginar as que estiveram antes e depois. E as que não
estiveram.
Há um restaurante onde as mesas estão muito juntas. Mas são
as minhas cadeiras favoritas no mundo inteiro. Uma cama para comer. E saio sempre
deliciada com a vida dos outros. Há alguma razão desconhecida para as pessoas
falarem alto enquanto comem, mas é muito prazeroso romancear diálogos triviais.
Ou não tão triviais assim, como um primeiro encontro, onde de um lado da mesa
temos um ramo de expectativas em flor e do outro as pétalas caídas de algo que
de tanto se expor, murchou. O nervosismo dos outros é fácil de relativizar. De
julgar e censurar. Somos capazes, por isso, de num segundinho (um momentinho,
por favor, que vou deliberar) conceber a teoria do ideal da convivência. Connosco nunca aconteceria
daquela forma. (e connosco sempre daquela forma, ou pior) O bom de nos apropriarmos da vida dos outros é conseguirmos desapropriarmo-nos da nossa. E quando a retomamos, ela volta a ter qualquer coisa de interessante
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